Por Rui Medeiros

Gelci Gusmão, advogado que se notabilizou em defesas perante o júri, exibe-me um postal que retrata o Elevador Lacerda. No plano superior, vê-se parte do Palácio Rio Branco, então sede da governadoria estadual, e, presa à mureta vazada que dividia praça Tomé de Souza da encosta do elevador, uma publicidade, em círculo, que perdurou por décadas, do Laboratório Bayer (então o “jingle” dessa empresa dizia: “Se é Bayer é Bom”. Com isso não concordavam vários médicos judeus que acusavam-na de compactuar com o Governo Hitler, no entre-guerras (vide Olga Lengyel Os fornos de Hitler). Lembro-me bem do local. Pelo Elevador Lacerda, durante bom tempo, fui transportado da Praça Tomé de Souza para a Praça Cairu, vice-versa. Continue a leitura do artido de Ruy Medeiros.


Mas o que está escrito no verso do Cartão Postal é que importa muito. Diz respeito a um jovem que se tornou parte da memória compartilhada de muitos que o conheceram ou notícias suas tiveram. Trata-se de uma mensagem. Leio: “Amigo Gelci: Espero alguma notícia sua. Recebi notícias de Itapetinga, mas quero também dos amigos de lutas e ideais. Continuo como sempre na labuta e agora de férias como é de seu conhecimento. Sem mais, do amigo Rosalindo. Salvador, 6.09.63”.

A mensagem completará, em setembro, 60 anos. A assinatura é de Rosalindo Souza que se encontrava a caminho de ser combativo jovem e dos mais respeitados líderes estudantis de seu tempo. De nosso tempo.

Então o país estava em ebulição. A classe dominante dividida. O cheiro de golpe estava no ar. IBAD, IPES, CCC e outros promoviam forte propaganda contra o governo estabelecido; grupo de militares, com sua doutrina da segurança nacional, pretendiam assumir o governo. No campo e nas cidades havia mobilização em sentido contrário ás demandas golpistas. O governo João Goulart tentava acalmar os ânimos e mencionava um suposto dispositivo militar, capaz de dissuadir golpe contra o Estado.

Os estudantes lutavam por reformas, editavam jornais, encenavam peças de teatro, realizavam recitais, participavam da vida política.
Dentre tantos jovens estudantes que abraçaram as lutas de seu tempo, estava Rosalindo, o autor da mensagem transcrita.

Nascido em Caldeirão Grande, Bahia, em 1940, Rosalindo Souza chegou a Itapetinga trazido por seus pais, Rosalvo Cypriano e Lindaura Correia Silva. Tinha ele então 5 anos de idade. Em Itapetinga estudou as séries do curso primário e, no renomado Centro Educacional Alfredo Dutra, realizou seu curso primário. Cypriano e Lindaura queriam seus filhos formados. Pessoas humildes, esforçavam-se para isso e a família crescia, exigindo-lhes muito trabalho.

O jovem indicava corresponder às esperanças dos pais. Era estudioso e inteligente. Ainda em Itapetinga apaixonou-se pela política e pela cultura em geral.

Em 1964, passou pelo exigente exame vestibular (provas escritas e orais, eliminatórias por disciplinas) e matriculou-se na Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. Para manter-se trabalhava no IAPC – Instituto de Aposentadoria e Pensão dos Comerciários (que depois seria incorporado a outros IAPS, na organização do INPS, hoje INSS). Gostava de literatura e de cinema (possuía uma filmadora de corda, já ultrapassada, com a qual imaginava fazer documentários), e participava do CECIBA – Clube de Cinema da Bahia.

A política e a oratória eram paixões maiores para o jovem Rosalindo. Logo, estava na política estudantil, em manifestações e nas disputas pela governança das entidades. Formou chapa (Renovação) e disputou a direção d Diretório Acadêmico Ruy Barbosa, da Faculdade de Direito da UFBA. Tornou-se grande líder estudantil. A ditadura militar passou a seguir seus passos. Contra ele e outros abriu IPM. Em 1969, com base no Decreto-lei 477, sem direito a defesa (prevista no próprio decreto), foi expulso do curso de Direito, mas conseguiu matricular-se na Faculdade de Direito Cândido Mendes, no Rio de Janeiro, onde concluiu o curso, bacharelando-se em Ciências Jurídicas e Sociais. Inscreveu-se na OAB, voltou a Itapetinga, desenvolveu aí atividade política, redigiu e imprimiu, utilizando-se de um “reco-reco” (espécie primitiva, artesanal e simplificada, de mimeógrafo consistente em tábua lisa, tela de náilon, rolo com tinta e stencil/matriz escrita) imprimia um “jornal” intitulado “O Fação”, dirigido aos trabalhadores e distribuído sigilosamente.

Por suas atividades políticas no movimento estudantil e acusação de ser membro do PC do B, respondeu a IPM e processo perante a Auditoria Militar (que julgava civis pela prática dos chamados crimes contra a Segurança Nacional. Antes da sentença condenatória, intuía a condenação, que realmente iria ocorrer: de fato foi condenado a dois anos e dois meses de reclusão em 13 de maio de 1971. Antes, resolveu incorporar-se à luta guerrilheira do Araguaia, para aí viajando em abril de 1971. Nas selvas do Araguaia morreu em combate com as forças da ditadura, tinha então 31 anos de idade.

Tanta recordação provocam um postal do Elevador Lacerda e a mensagem em seu verso. Isso faz-me fazer memória do amigo Rosalindo. É que (e o leitor deve procurar lembrar quem o disse) “o pensamento parece uma coisa à toa, mas como é que a gente voa quando começa a pensar”. Vai um começo: foi um grande compositor e letrista. //Blog do Anderson

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